Essa situação nunca foi uma novidade. Na verdade, é mais comum do que se pode imaginar. Uma morte subestimada. É bem provável que muitos estejam desistindo da vida sem um suicídio padrão e, portanto, não são contabilizados nessa estatística. É preocupante o número de estudantes de medicina e de médicos com sofrimento mental e dores emocionais. A ansiedade, a depressão e o consumo de álcool e de outras drogas são o carro chefe dessas amarguras da alma.
Mas, o que estaria acontecendo?
Eu parto, inicialmente, do pressuposto de que o ato de viver não é uma tarefa simples. Não é simples para ninguém, pois a vida, a despeito de bela, é muito habilidosa em nos machucar. A vida solicita que aprendamos a viver com perdas e frustrações. Claro que conquistas acontecem, mas, se pararmos para pensar, os reveses são marcantes no nosso existir.
Diante disso, qual é a trajetória da vida médica?
Uma jornada, por vezes, inadequada, pois é a atuação do famoso “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Ou seja, propomos aos pacientes uma vida equilibrada com paz e qualidade, mas, salvo as exceções, não executamos isso na nossa própria vida.
O sonho da medicina é alcançado por alunos secundaristas como muita privação de vida. Ao encarar os vestibulares de medicina, seus proponentes precisam abdicar de muita coisa. Numa fase importante para a organização do equipamento mental e emocional do ser humano, esses estudantes, futuros médicos, são obrigados a quase se esquivarem de viver. Uma vida social restrita em meio à pressão social por resultados tendo como cenário de fundo a competitividade do modelo educacional brasileiro. Alguns têm êxito nessa busca e não é incomum adentrarem no curso de medicina já doentes.
E lá dentro como é?
Como são os seis anos de graduação na medicina?
O que eu posso dizer como médico e, logicamente, ex-estudante de medicina é que estamos diante de um modelo, via de regra, “doido”. Inúmeras disciplinas pesadas acontecem simultaneamente. Disciplinas essas que acreditam serem as únicas da grade curricular. Não é rara a falta de integração curricular de modo que o estudante fica no meio de uma guerra. Poucas horas de sono, tensão emocional constante e uma pressão descomunal aparecem no roteiro da vida do estudante de medicina. Isso por 12 semestres! Para agravar, o contato com os pacientes, nos semestres de ciclo clínico, surge sem a condição de prepará-los para a dor humana. Esse preparo só pode ocorrer com estudos que devem ir além da medicina e com as vivências humanas. No entanto, há de se convir que o modelo do vestibular e do estudo formal intenso, nos semestres da medicina, impossibilita isso. Não há espaço para ler filosofia, literatura, artes e ciências humanas, pois não acontece estímulo para isso. Em meio a tantas demandas, seria uma “perda de tempo”. Esse estudante de medicina precisa lidar com a dor humana sem sequer ter o preparo para lidar com a sua própria dor. Cada vez mais jovens eles adentram ao curso de medicina e, por conseguinte, cada vez mais frágeis para a dor da existência humana. Para piorar, os últimos semestres do curso, que são totalmente imersos no contato com o paciente, são terríveis, visto que nasce outra competição pior – o gargalo das residências médicas. Quem passa pelo funil assume uma jornada de aproximadamente 80 horas semanais de árduo trabalho. No papel não é isso, porém, na prática, acaba sendo. São 3 ou 4 anos nesse formato. Talvez, no último ano, aconteça um pequeno alívio, mas continua sendo essa vida extenuante.
Diante disso, sobra tempo para o que?
Ou melhor, como seria possível se cuidar?
Aquele que não consegue fazer uma residência médica e ser especialista adentra no mercado o qual está cada vez mais saturado pelo crescente aumento de escolas médicas. Desse modo, a estrutura de trabalho, encontrada por eles, é surreal e desestimuladora. Quem consegue ser especialista vai caminhando nessa vida de pouco cuidado consigo. Trabalho em excesso, sedentarismo, alcoolismo, ansiedade, angústia e insatisfações são peculiaridades cada vez mais presentes na vida médica. A falta de tempo para família e casamentos voláteis também passam a ser comuns nessa vida. Relações despedaçadas e liquefeitas dão o mote na vida de muitos colegas médicos. Ao final de tudo, muitos de nós, médicos, olhamos para a vida e entendemos que a trajetória foi intensa e que poderia ter sido diferente. Dentro desse mal-estar histórico, alguns colegas não suportam tamanha dor e pensam negativamente sobre as suas próprias vidas.
É tempo de repensar. É tempo de reavaliar o modelo. É tempo de refletir. Está errado! Não é possível não querer rever o modelo de educação, formação e atuação médica. O custo disso aparece nessas mortes precoces e cada vez mais prevalentes de suicídios em estudantes de medicina e médicos.
Caso você, colega estudante ou colega médico, esteja passando por uma angústia assim e tenha se identificado com esse meu artigo, procure se cuidar. É possível, sim, modificar essa trajetória e conduzir a vida de forma mais leve e equilibrada. Se for preciso, procure uma ajuda. Vamos rebobinar a vida e reconstruir…
Régis Eric Maia Barros
Médico Psiquiatra
Régis Barros é graduado em medicina pela Universidade Federal do Ceará e tem residência médica em psiquiatria e psicoterapia pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo. Foi na Faculdade de Medicina da mesma instituição que obteve o título de especialista em Psiquiatria Social, mestre e doutor em Ciências Médicas, ambas com área de atuação em Saúde Mental. O professor também é especialista em psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria e em Psicoterapia de Grupo pelo Instituto Enrique Pichon-Rivière de Ribeirão Preto.
Já atuou como psiquiatra do CAPS Ad de Ribeirão Preto – SP, da Prefeitura Municipal de Serrana – SP, do Hospital Psiquiátrico de Ribeirão Preto (Hospital Santa Teresa), do Ambulatório de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (Unidade de Álcool e Drogas), do Hospital Geral de Brasília e da Coordenação de Saúde da Presidência da República.
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