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Do Consultório ao Feed: A Expropriação da Saúde no Século XXI

Anos atrás, ainda neófito na medicina, tive a oportunidade de conhecer e conversar com o brilhante médico e pensador da saúde pública Arnaldo Ribeiro Costa Lima. Em uma das conversas, tomei conhecimento do livro “Nêmesis Médica – A Expropriação da Saúde” e fiquei estupefato. Publicado em 1975, o filósofo austríaco Ivan Illich apresenta uma crítica contundente à medicalização da vida e ao papel da medicina moderna na sociedade. Illich argumenta que o sistema de saúde, ao invés de ser apenas um meio de cura, tornou-se um agente de alienação, transferindo a responsabilidade pelo cuidado do corpo do indivíduo para as instituições médicas, transformando a saúde em mercadoria e os cidadãos em pacientes crônicos, dependentes do saber técnico e das prescrições profissionais.

 

Para o autor, essa medicalização excessiva gera danos em três níveis. No nível clínico, estão os efeitos iatrogênicos diretos — ou seja, os prejuízos causados por procedimentos médicos desnecessários ou mal indicados, que adoecem em vez de curar. No campo social, surge uma dependência estrutural das instituições de saúde, fazendo com que aspectos naturais da vida, como o nascimento, o envelhecimento e a morte, sejam tratados como eventos médicos e não como processos humanos. Por fim, no nível cultural, Illich aponta uma perda significativa de autonomia: à medida que nos afastamos da sabedoria popular, das práticas comunitárias e da escuta do próprio corpo, nos tornamos reféns da autoridade dos especialistas e das prescrições do sistema.

 

Décadas depois, as reflexões de Illich ressoam fortemente na maneira como lidamos com a saúde na era digital. As redes sociais, com seu ritmo acelerado e hipervalorização da estética performática, tornaram-se palco para uma nova forma de medicalização: a saúde como espetáculo. Influenciadores, celebridades e até profissionais de saúde promovem fórmulas rápidas de bem-estar, dietas milagrosas e modismos terapêuticos, prometendo resultados quase instantâneos. O corpo ideal, a mente saudável e a produtividade plena tornam-se objetivos urgentes, quase compulsórios, contudo excessiva e profundamente ansiogênicos.

 

Essa busca incessante por “curas rápidas” é evidenciada por dados preocupantes. Uma pesquisa recente revelou que 36% da Geração Z prefere buscar conselhos de saúde nas redes sociais em vez de consultar profissionais médicos, contrastando com apenas 2% dos Baby Boomers que fazem o mesmo. Essa tendência levanta sérias preocupações sobre a disseminação de desinformação e os riscos associados à autodiagnose e aos tratamentos inadequados. Além disso, movimentos como o “SkinnyTok”, popular entre adolescentes no TikTok, promovem comportamentos alimentares extremos e não saudáveis, normalizando transtornos e reforçando padrões corporais inalcançáveis. Com mais de 35 mil postagens, esse tipo de conteúdo não apenas banaliza o sofrimento psíquico como o disfarça sob uma falsa promessa de autocuidado.

 

O paradoxo é evidente: nunca se falou tanto sobre saúde, e nunca estivemos tão vulneráveis. A expropriação da saúde, como apontada por Illich, manifesta-se hoje como uma terceirização emocional do autocuidado, onde não há espaço para o tempo da escuta, da dúvida, da recuperação lenta. Queremos resultados imediatos, mesmo que isso signifique ultrapassar os limites do corpo e da razão.

 

Talvez o caminho esteja em resgatar o que Illich tanto valorizava: a autonomia. Não como uma negação do saber médico, mas como uma retomada da capacidade crítica, da escuta do próprio corpo e da valorização do tempo natural dos processos humanos. O telhado que aguenta chuvas e tempestades precisa de pilares bem pensados,  cuidadosamente feitos e estruturalmente fortes.

 

Em um mundo que nos pede pressa, lembrar que saúde é construção — e não um produto de consumo imediato — pode ser o gesto mais revolucionário.

 

Créditos da imagem: Freepik

 

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