Antes considerada próxima da erradicação, a cólera está de volta, desidratando e matando pessoas em poucas horas, e devastando comunidades em seis continentes. Apesar dos números alarmantes de casos e mortes no ano passado, os tomadores de decisão estão desviando os olhos, deixando as pessoas morrerem de uma doença evitável e tratável.
A comunidade de saúde deve soar o alarme para ações imediatas. Uma resposta de emergência forte e global é necessária com urgência, mas é apenas um primeiro passo. Mais do que nunca, o mundo deve investir em sistemas de água potável e saneamento, e preparar as comunidades antes que ocorram novos surtos.
Nos últimos 200 anos, houve sete pandemias de cólera, e o aumento de hoje é o maior em uma década. Em 2022, 30 países relataram surtos de cólera, incluindo lugares que estavam livres da doença há décadas. No Haiti, onde milhões de pessoas foram deslocadas pela violência, a cólera matou centenas de pessoas em apenas alguns meses. O Líbano está enfrentando seu primeiro surto desde 1993, com mais de 6.000 casos registrados. Após inundações devastadoras, a Nigéria teve um grande surto de cólera. No Malawi, o pior surto em décadas deixou 620 pessoas mortas desde março. As escolas estão fechadas em uma tentativa de conter o surto de infecções.
O risco de transmissão de cólera se multiplica quando as pessoas vivem em condições precárias ou superlotadas, e não têm acesso a água potável, saneamento adequado e instalações higiênicas. Uma doença diarreica causada pela bactéria Vibrio cholerae, a cólera é comumente transmitida através de alimentos ou água contaminados. Se não for tratada, pode causar desidratação grave e ser mortal em poucas horas.
Quase metade da população mundial, aproximadamente 3,6 bilhões de pessoas, vive sem saneamento administrado com segurança em suas casas, deixando-as vulneráveis a surtos de cólera. A Organização Mundial da Saúde informa que pelo menos dois bilhões de pessoas consomem água de fontes contaminadas com fezes.
Crises sobrepostas
As causas profundas por trás da onda de recentes surtos de cólera são, no entanto, complexas e multifacetadas. A sobreposição de crises humanitárias em todo o mundo, como migração, conflitos, pobreza e injustiça social, está forçando as pessoas a viver em condições insalubres, o que está alimentando a propagação dessa doença infecciosa. Após a pandemia de Covid-19, o número de pessoas vivendo em extrema pobreza aumentou pela primeira vez em uma geração. E agora, o aumento da inflação e as repercussões do conflito na Ucrânia, podem piorar uma situação já terrível.
A mudança climática contribui para a propagação da cólera. Eventos climáticos extremos mais frequentes e intensos, como furacões e inundações, resultaram em grandes interrupções nos processos de tratamento de água e danos à infraestrutura sanitária em muitas partes do mundo. A combinação de temperaturas mais altas e precipitação extrema, leva a uma maior incidência de infecções transmitidas pela água, como a cólera.
Fatores como a insegurança alimentar, também exacerbam a vulnerabilidade das comunidades à propagação do cólera. A desnutrição enfraquece o sistema imunológico, aumentando o risco de uma pessoa apresentar sintomas graves e morte. À medida que os eventos globais elevam os preços dos alimentos, o número de pessoas desnutridas também aumenta. Estima-se que 140 milhões de pessoas na África enfrentem grave insegurança alimentar.
A cólera pode ser tratada por meio de um método simples chamado tratamento de reidratação oral, mas muitas pessoas não têm acesso a essa ferramenta que salva vidas, estima-se que 56% das crianças com diarreia não podem receber esse tratamento. A cólera também pode ser evitada por meio da vacina oral contra a cólera, mas a oferta não pode atender às necessidades atuais. Até o final de 2022, 11 países com surtos de cólera haviam solicitado 61 milhões de doses da vacina, muito mais do que os 36 milhões de doses que deveriam ser produzidas.
A escassez de vacinas obrigou recentemente o Grupo de Coordenação Internacional, do qual o A Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC) faz parte, para mudar de uma estratégia de duas doses para uma dose única, para que a cobertura possa ser expandida.
Moralmente inaceitável
Em lugares como Malawi e Haiti, a taxa de mortalidade por cólera triplicou em 2022. Ninguém deve morrer de uma doença evitável e tratável. Este nível de sofrimento é moralmente inaceitável.
A IFRC lançou uma resposta de emergência urgente em 20 países, onde voluntários treinados da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, rastreiam as rotas de transmissão, garantindo também que as instalações sanitárias estejam funcionando, e que o abastecimento de água potável esteja disponível. No nível comunitário, as equipes tratam as pessoas administrando tratamento de reidratação oral, e encaminhando as pessoas mais afetadas para o hospital. No Malawi, onde o número de infecções aumenta diariamente, a Cruz Vermelha estabeleceu 14 pontos de reidratação oral em todo o país, e está alcançando mais de 753 000 pessoas com campanhas de saúde e higiene.
Os voluntários também desempenham um papel importante nas campanhas de vacinação contra a cólera. A Cruz Vermelha Libanesa, por exemplo, contribuiu consideravelmente para o lançamento da campanha nacional de vacinação contra a cólera. Por meio de visitas de casa em casa, instituições e organizações, a Cruz Vermelha Libanesa vacinou mais de 260 000 pessoas em apenas 39 dias em 151 municípios.
Em países onde a cólera é endêmica, estão sendo implementados sistemas sustentáveis de água, saneamento e programas de higiene de longo prazo. Como exemplo, nesses países foram construídos e reabilitados 1.300 sistemas de água, mais de 7.000 instalações sanitárias em residências, escolas e centros de saúde e cerca de 6.000 estações de lavagem de mãos, melhorando a vida de mais de três milhões de pessoas em todo o mundo.
Os funcionários e voluntários da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho estão na linha de frente desta emergência de saúde pública, mas não são capazes de fazer isso sozinhos. O ressurgimento da cólera em todo o mundo, apesar de décadas de esforços de erradicação, sugere que os mecanismos de controle, prevenção e resposta à cólera devem ser rapidamente ampliados.
Para prevenir surtos, reduzir a transmissão e salvar vidas, é preciso ter comprometimento político e maiores recursos financeiros. Deve-se garantir o acesso ao abastecimento de água potável e investir em infraestrutura de saneamento adequado nas comunidades em maior risco. Precisa-se aumentar a produção e distribuição de vacinas orais contra a cólera. Os sistemas de saúde pública e os centros de tratamento de cólera devem ser mais bem financiados. Por último, precisa-se construir confiança nas comunidades. É menos provável que as pessoas sigam as medidas preventivas, se não confiarem nos líderes comunitários e nos sistemas de saúde.
Mas, para realmente acabar com a cólera, não se pode esquecer as crises humanitárias em sua raiz. Governos, organizações não governamentais e o setor privado devem finalmente mobilizar e aumentar os investimentos em infraestrutura e sistemas sociais e de saúde, para que possam resistir às consequências de desastres, conflitos e mudanças climáticas.
Uma das lições mais importantes que se aprendeu com a pandemia de Covid-19, é que ninguém está seguro até que todos estejam seguros. É do interesse de todos trabalharmos juntos e garantir que ninguém seja deixado para trás.
Referente ao artigo publicado em British Medical Journal
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