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A saúde pode custar a dignidade?

A dignidade humana é um conceito filosófico central que permeia a história do pensamento desde a antiguidade clássica até os debates contemporâneos sobre direitos humanos e políticas públicas. Kant afirmava, de maneira emblemática, que o ser humano jamais deveria ser tratado como um meio, mas sempre como um fim em si mesmo. Isso significa que cada indivíduo detém um valor intrínseco, inalienável e absoluto. Entretanto, quando se observa o cenário atual da saúde pública, especialmente em países em desenvolvimento, como o Brasil, torna-se inevitável questionar se este ideal está sendo efetivamente respeitado ou sistematicamente violado.

 

Jean-Jacques Rousseau já alertava sobre a responsabilidade do Estado na proteção dos cidadãos, defendendo que a legitimidade da autoridade política se fundamenta justamente no bem-estar geral. Mas o que acontece quando esse bem-estar é negado através de um sistema de saúde que falha em atender necessidades básicas? A precarização da saúde pública revela um Estado que, mais que falhar em cumprir suas funções, submete seus cidadãos à humilhação constante, reduzindo-os de sujeitos de direitos a objetos de negligência institucional.

 

Michel Foucault, em sua análise profunda sobre as relações de poder e controle social, expõe como a medicalização da vida pode transformar a saúde em um mecanismo disciplinar. Entretanto, o que vemos atualmente não é apenas uma medicalização excessiva, mas uma ausência total ou parcial do direito básico à assistência digna. Filas intermináveis, falta de medicamentos essenciais, ausência de equipamentos mínimos para tratamento, profissionais de saúde sobrecarregados e desumanizados pelo excesso de trabalho: tudo isso converte pacientes em números, rostos anônimos, cujas histórias são invisibilizadas pela precariedade.

 

Hannah Arendt argumenta que a dignidade está intimamente ligada à ação humana e à capacidade de indivíduos se inserirem no espaço público como sujeitos ativos. Porém, quando a saúde pública é precarizada, a ação humana é diretamente restringida, seja pela dor física, pelo sofrimento psicológico, ou pela desesperança gerada pela ineficiência estatal. Como exercer plenamente a cidadania e lutar por direitos se a dor diária sufoca qualquer outra preocupação? Se a saúde é negada, não se nega junto a capacidade do indivíduo de ser reconhecido plenamente como humano?

 

Para Amartya Sen, o desenvolvimento está diretamente associado à ampliação das capacidades humanas. Uma saúde pública eficaz amplia essas capacidades ao proporcionar condições mínimas para que todos possam desfrutar de oportunidades iguais. Contrariamente, a ausência dessa eficácia subtrai possibilidades vitais, aprofundando desigualdades e alimentando ciclos de pobreza e exclusão social.

 

Contudo, a questão que fica é ainda mais profunda: podemos, enquanto sociedade, nos considerar moralmente íntegros se aceitamos silenciosamente que a dignidade de tantos seja perdida em corredores lotados de hospitais públicos? Qual o preço ético de nossa indiferença ou da passividade frente ao sofrimento institucionalizado? Como podemos defender a dignidade humana em discursos políticos, educacionais e sociais enquanto toleramos que seres humanos definhem à espera de atendimento médico básico?

 

É necessário, portanto, questionar a estrutura que mantém esse cenário de precariedade, identificar claramente as falhas do sistema e as responsabilidades políticas, além de resgatar o respeito pela dignidade humana como princípio norteador das políticas públicas. Enquanto cidadãos, precisamos decidir qual papel desejamos desempenhar: o daqueles que assistem passivamente à degradação humana institucionalizada, ou o daqueles que exigem e promovem mudanças concretas.

 

Ao refletir sobre a saúde pública precária, a dignidade deixa de ser um conceito abstrato, debatido apenas nas salas acadêmicas e nos discursos políticos vazios, e passa a ser uma necessidade prática, urgente e incontornável. Por isso, é fundamental nos perguntarmos continuamente: quanto vale a dignidade humana? A saúde, direito fundamental, pode mesmo ser o preço que estamos dispostos a pagar pela nossa inação? Essas questões, certamente, ficarão ecoando em nossas consciências muito tempo após serem formuladas.

 

 

Créditos da imagem: Freepik

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