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“Medicina de Emergência: Por que eu?” por Dra. Jule Santos.

A ilustre Dra. Jule Santos (médica emergencista) fez um maravilhoso texto sobre o amor e a dificuldade que é trabalhar com pacientes que necessitam de cuidados rápidos, sem hora prevista e situação desconhecida. Ela Fala da adrenalina de se trabalhar com emergências, salvar vidas e por outro lado, vê-las partir.

Confira a seguir: 

“- Eu amo infarto!

Eu sei, eu sei… essa é uma frase estranha… talvez até um pouco sensacionalista. As pessoas ficam desconfortáveis…. Quando eu disse isso pela primeira vez, cheia de entusiasmo e brilho nos olhos, meu ex-noivo na época, me olhou meio incomodado:
– Você pode falar isso? – Ele se perguntava se era apropriado para um médica gostar que pessoas infartassem.

Bom, eu não tenho nada contra as pessoas. Muito pelo contrário, luto incessantemente para que sobrevivam. E isso é verdade, eu sou muito apaixonada por infartos.
Eu gosto da energia por trás do quebra-cabeça. Quando chega o paciente, a fácies de dor, a posição do corpo, a mão sobre o tórax em sinal de aperto, a cor da pele, o suor, a temperatura da pele, o tipo de dor, as comorbidades, os fatores de risco, e olha esse ECG!

– Eu sei isso! Eu sei tratar! E agora você vai melhorar rápido! – E quando funciona. – E sou foda! 1 pra mim, zero pro infarto!

Simplesmente amo essa sensação. Essa adrenalina.

E foi por isso que escolhi a Medicina de Emergência.

Mas nem tudo são flores, não posso mentir.
A Medicina de Emergência por si só, pode ser muito danosa. Muito pesada. Mortes que não conseguimos evitar. Diagnósticos de doenças incuráveis.

Lembro da família que trouxe a mãe por confusão mental, todos muito calmos.
– Será que é ansiedade? Talvez um AVC, não é doutora? Estamos passando por tanto coisa…

Era um tumor cerebral.
Pronto. Era o fim. Todos nós queríamos um simples AVC.

É pesado. Há estudos mostrados as consequências de se lidar constantemente com estresse pós-traumático dos outros. E nossos. A dor de ver morrer, mesmo quando se fez tudo possível e não faltou nenhum medicamento.

E somando a isso um sistema de saúde corrosivo, a Medicina de Emergência pode te esgotar.

E o sistema me atingiu em cheio. E esgotei. Estava claro: irritação, estresse, descontentamento, três brigas em uma semana: burnout.

Parecia que tudo o que eu estava fazendo era sem sentido. Enquanto eu aprendia a ser a melhor médica que eu poderia ser: estudando, viajando, eu voltava para um ambiente estagnado, cheio de pessoas adoecidas pelo sistema, pessimistas… E mais mortes injustas. E problemas sem fim de falta de recurso e muito demanda. Eu tinha idéias e tentava ser otimista, eles riam na minha cara e me tratavam como ingênua e boba. Atender infartos deixou de ter emoção e passou a me causar sofrimento. Porque eu não tinha mais para onde encaminhar o paciente, ou toda vez que eu precisava ligar, o médico do outro lado me tratava mal, ou porque ele não confiava em mim, ou porque o sistema tinha contaminado ele contra o paciente. Ele defendia os gastos do hospital. E eu me via numa luta dolorida.

Cada paciente era mais dor que alegria, mesmo quando dava certo.
Eu estava doente. Parecia que eu tinha desaprendido a ter esperança. E pra piorar, não sei mentir.

– Eu vou morrer doutora?
Meu rosto inteiro dizia, sim. Apesar da minhas palavras serem:
– Não pense nisso agora. Vamos cuidar de você.

Em casa eu remoía a mentira. Não era a minha mentira, mas era a mentira do sistema (fizemos tudo possível). Mas me sentia culpada, vencida, e amarga.

Eu quis desistir várias vezes, e nunca achei que isso aconteceria comigo. Não comigo! Como assim eu? Eu era apaixonada pela Medicina de Emergência!?
Respira fundo. Pede ajuda. Luta.

Aos poucos o processo de cura começou. Voltei para a terapia. E tenho amigos incríveis! Amigos virtuais, amigos presentes, amigos distantes, mentores, mentees, alunos, residentes, seguidores… Eu recebia carinho, compreensão e mensagens de encorajamento o tempo todo. A maioria das vezes sem querer, fruto daquela paixão que eu tinha plantado. Outras vezes porque pedi ajuda.

Não foi fácil e envolveu muitas recaídas, muito desespero, muita vergonha superada… Aos poucos, com determinação, um passo após o outro, usando empatia, conhecendo novas perspectivas fui melhorando… A cada pequena vitória, uma pequena, mas importante celebração.

Eu queria, desesperadamente, fazer sentido. Eu queria ter sentido.

Por que eu?

“A maioria das vezes, o fato de você se importar, é o suficiente.” Um dos conselhos mais acolhedores que já recebi. Foi como analgesiar uma dor intensa que eu nem sabia de onde vinha.

Um tempo atrás atendemos uma criança em parada cardíaca, trazida por uma outra equipe médica. O paciente estava intubado no esôfago e aquele médico não tinha visto. Reanimamos por mais de uma hora, e tive muito cuidado para encerrar os esforços, porque é sempre uma situação muito delicada com criança. Na hora do debriefing, estive preocupada em informar o médico da intubação incorreta, era importante que ele soubesse do erro para ter mais atenção no futuro, mas era importante que não se martirizasse, e eu jamais seria arrogante. Mas qual não foi a minha surpresa quando o médico deu de ombros e disse:
– Acontece né, doutora?

Ele não se importava, e aquele desdém quebrou meu espírito, e me transformou em ódio e desprezo. Eu queria massacrá-lo, amedrontá-lo, ameaçá-lo. Mas me senti fracassada mais uma vez, afinal, de fato, ele não se importava com nada do que eu falava…

E a família? O que ia adiantar eu transmitir o meu ódio para eles? Nada daquilo iria trazer seu filho de volta.

Aquele médico poderia ser uma má pessoa, ou poderia estar em defesa tentando amenizar um erro, de fato, comum. O problema não era intubar errado, o problema era não identificar o erro imediatamente. O problema era não se importar… Minha cabeça não saia disso. E eu jamais iria permitir que ele informasse os pais da trágica notícia.

Por que eu?

Respirei fundo, agradeci a equipe por todo o esforço, pedi que preparassem o corpo e fui até o lugar de espera. Me sentei ao lado do pai, e contei tudo o que fizemos tentando sanar a angústia, mas dando tempo para a compreensão.
– Não havia mais nada a ser feito. Ele morreu.

O pai fitou o chão por um tempo. A esposa grávida de 8 meses, ele me contou tentando entender o que deveria fazer. Então veio o pranto. Aguardei.
E então, ele me olhou verdadeiro:
– Obrigada doutora por tudo o que vocês fizeram.

Eu nunca vou esquecê-los. E isso não me adoece mais.

E então, aos poucos, com o passar dos dias, foi como o dia depois da tempestade, o mar amanheceu numa calmaria lindo.

Meus sentimentos se apaziguaram, redefini minhas responsabilidades diante da minha vida e as minhas escolhas, redefini minha motivação, minha ambição, meu propósito, re-ajustei minhas expectativas e encontrei um novo poder.

Não foi fácil e não foi “só querer”. Não foi simplesmente “parar de pensar nisso”. E ainda, de vez em quando, dói.

Enquanto eu melhorava tive a sorte suficiente de ver meu ambiente de trabalho melhorar. O espaço foi reformado, contrataram mais profissionais, reporam diversas medicações, e voltei para um lugar onde as pessoas estavam ansiosas para trabalhar comigo. Sentiam a minha falta, me mostrando que eu fazia a diferença. Então, aos poucos, aquela energia e aquele amor por atender emergências, voltou.

Mas ainda faltava lidar com o lado mais doloroso da Medicina de Emergência: as más notícias.

No começo da minha cura, entendi que precisava estar presente. Estar presente em todas as minhas tarefas. Não somos multi-task. Somos bons em priorizar e escalonar tarefas.

Intubaram um paciente idoso, muito doente e que agora aguardava vaga de UTI. A família estava ansiosa, querendo saber quais eram as chances exatas dele sobreviver.
Sabe, não existe as palavras perfeitas. Existe honestidade. Respeito. E empatia.

Eles me pediram para conversar com todos aos mesmo tempo, para que não houvesse quebra de informação. Aceitei.

A esposa do paciente, uma senhora já de idade avançada, sentava num banco desconsolada abraçada pelos netos. Os filhos estavam em pé, a rodeavam. Eu me sentei ao lado dela e apoiei delicadamente seu braço, com cuidado para não ultrapassar barreiras.

– Doutora, meu marido é um homem muito teimoso. Demais. Sabe, ele está doente há muito tempo. Mas não queria vim no hospital. Pensa num homem teimoso… Eu disse pra ele… Eu disse… Agora eu sei que é tarde. Ele está muito ruim, né doutora?
– Sim, está.
– Ele vai morrer? Pode me falar.
– Ele está muito grave, tem risco de morrer sim, mas no momento não podemos saber com certeza. Temos que esperar a resposta ao tratamento.

Eles fizeram mais algumas perguntas que respondi da mesma forma, olhando nos olhos, com paciência, presente. Esperei para ter certeza que não havia mais dúvidas. Ela me agradeceu, genuinamente. E então a abracei e disse a verdade:
– Estamos fazendo tudo o que podemos.

Eles pareceram satisfeitos em saber que nos importávamos. E naquele momento senti que fazia a diferença ali, e a dor para mim foi amenizada.

Não posso impedir que pessoas fiquem doentes, não posso nem mesmo garantir quem vai sobreviver, muito menos posso refazer as expectativas das famílias, mas posso mostrar que nos importamos. Esse é o meu diferencial. E por isso, eu.

– Eu amo infartos! E amo quando posso aliviar o medo da negligência por mostrar que nos importamos. E por isso, a medicina de emergência.?”

 

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