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A Covid-19 em Manaus

Um aumento repentino no número de pacientes com Covid-19, esgotou os suprimentos hospitalares de oxigênio na capital da região, Manaus, forçando amigos e familiares de pacientes a correr para fornecedores privados. Na fila por horas no calor e nas chuvas torrenciais, eles estão desesperados para comprar um cilindro de $ 70 (R$ 400,00), que pode acabar sendo um salva-vidas. Alguns pacientes estão sendo transportados de avião para outros estados, onde há leitos disponíveis. Mas, novamente, a capacidade é limitada, especialmente em Manaus, onde a crise se estende muito além dos muros do hospital, e muitos estão morrendo de asfixia.

“Muitas pessoas morreram na entrada do hospital e do lado de fora na ambulância, mas a maioria morreu e ainda está morrendo em casa, enquanto suas famílias buscam oxigênio na cidade”, diz Jesem Orellana, pesquisador de saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz do Brasil.

Cerca de 80 mortes confirmadas de Covid-19 foram relatadas a cada dia em maio de 2020, e Manaus foi a primeira cidade brasileira a cavar valas comuns. Na segunda onda, em janeiro de 2021, esse número ultrapassou 100 mortes por dia. O novo patamar de desespero em uma cidade que já sofreu tanto com a primeira onda da pandemia, foi um choque para os moradores e para os especialistas em saúde pública.

Também alarmou pesquisadores em todo o mundo. Muitos acharam que uma segunda onda era impossível, devido à escala do surto anterior. “A comunidade acadêmica achava que estava perto da imunidade coletiva”, diz Diego Rosselli, epidemiologista da Universidade La Javeriana de Bogotá. “Mais uma vez, entendemos errado.”

Ainda por cima, uma nova variante do vírus, P.1, foi detectada em Manaus. Como outras variantes detectadas recentemente, parece ser mais infecciosa, e pode escapar de anticorpos que anteriormente forneciam proteção contra SARS-CoV-2.

A cidade ribeirinha, com dois milhões de habitantes e pólo de inúmeras comunidades indígenas que vivem no entorno, é hoje o epicentro da epidemia no Brasil, país que já sofre o segundo maior número de mortes no mundo.

 

Sem imunidade de rebanho

O título inicial de um estudo não revisado por pares, lançado em pré-impressão em setembro de 2020, “A imunidade de rebanho da Covid-19 na Amazônia Brasileira”, foi, em retrospectiva, prematuro. Porque a conclusão estava tão errada é menos certa, e não apenas, por suposições excessivamente otimistas.

Por um lado, usar doadores de sangue como amostra pode ter distorcido os resultados. “Os doadores são um subconjunto especial da população”, diz Paulo Lotufo, epidemiologista da Universidade de São Paulo. Eles são mais propensos a passar o tempo fora de casa, e trabalhar em empregos, que os colocam em maior risco de contrair a Covid-19, diz ele. Lotufo acredita que a proporção de residentes com anticorpos foi provavelmente menor, e que a falsa confiança criada pelo primeiro estudo. desempenhou um papel na causa do segundo aumento nos casos. Mas vários epidemiologistas importantes, embora reconheçam as limitações do estudo, acreditam que apenas imprecisões significativas sejam improváveis.

“É possível que a modelagem esteja errada, e a soroprevalência nas pessoas seja realmente menor. Soroprevalência é a quantidade de anticorpos medida no soro do sangue como um marcador de exposição ao patógeno, que é usada para estimar a proporção da população que foi infectada, ​​diz William Hanage, epidemiologista de Harvard. “Mas eu não acho que seja possível que eles fossem muito mais baixos.” Aplicar a taxa de mortalidade esperada da Covid-19 em Manaus, com a taxa de soroprevalência estimada de 76% do estudo, também resultaria em cerca da mesma quantidade de mortes que foram relatadas lá, Hanage e outros apontam. “É provável que uma grande proporção da população tenha sido infectada”, conclui Deepti Gurdasani, epidemiologista da Queen Mary University of London.

Os doadores refletem bem a população em geral em idade e renda, afirma Nuno Faria, epidemiologista de Oxford que co-liderou o estudo. “Excluir amostras de pessoas com sintomas da Covid-19, pode ter resultado em uma contagem insuficiente de anticorpos”, diz ele.

Portanto, se a maioria da população já havia sido infectada, e os níveis de anticorpos realmente eram tão prevalentes, como os níveis de infecção poderiam ter disparado de novo?

 

Nova linhagem, novos medos

 

Existem três explicações para como o vírus pode se espalhar rapidamente, apesar da maioria da população ter sido infectada anteriormente, dizem os especialistas.

Uma é que as pessoas estão sendo reinfectadas pelo coronavírus, à medida que os anticorpos diminuem gradualmente após a infecção. Essa tendência é central para o Memorando John Snow, assinado por 7.000 especialistas e profissionais de saúde no ano passado, em oposição aos que pediam uma estratégia de “imunidade de rebanho natural”, que teria permitido que o vírus se propagasse livremente pela população, para fornecer uma ampla exposição, e em consequência gerar uma imunidade coletiva natural.

Mas essa teoria parece “improvável” neste caso, diz Hanage. “Houve estudos razoavelmente bons de outros lugares, que sugeriram que a imunidade tende a durar pelo menos oito meses.” Os casos em Manaus atingiram o pico em maio. Mais convincente e mais preocupante, é que a situação poderia ser explicada pela variante P.1. Como a variante B.1.351 detectada na África do Sul e a B.1.1.7 encontrada pela primeira vez no Reino Unido, a P.1 evoluiu mais rápido do que o esperado. E, assim como a B.1.351, a maioria de suas mutações está no local da proteína spike que se liga e penetra nas células humanas.

“Embora algumas dessas mutações sejam conhecidas por terem impactos sobre a imunidade, não sabemos o que elas estão fazendo em combinação”, diz Hanage. “E é neste local onde circula algo que parece suspeito, que assistimos a um grande número de hospitalizações e mortes. Essa é uma grande parte da razão pela qual estamos olhando para Manaus com as palmas das mãos suadas.”

A P.1 poderia ser mais transmissível, pois entre suas mutações está uma chamada N501Y, que também está na B.1.1.7, e foi associada ao aumento da infecciosidade em modelos de camundongos, o que aumentaria o limite de imunidade do rebanho.

Mas também pode ter evoluído para evitar anticorpos de cepas anteriores. A primeira reinfecção confirmada envolvendo a P.1. foi notificada em Manaus em 18 de janeiro. Os primeiros estudos, examinando como os anticorpos lutam contra as novas variantes, sugerem que uma mutação conhecida como E484K, presente tanto em na P.1 quanto na variante sul-africana, poderia estar ajudando o vírus a evitar anticorpos e a reinfectar pessoas.

Embora seja incerto como a P.1 poderia estar impulsionando o aumento de casos em Manaus, Hanage suspeita que isso esteja desempenhando um papel importante. Assim como os casos recentes de reinfecção, a análise mostra que a P.1 se tornou a cepa dominante em Manaus, aumentando a probabilidade de estar causando a crise atual.

 

Lições a serem aprendidas

Mais estudos são necessários para entender o papel da variante P.1. Já existem, no entanto, lições a serem aprendidas. Os dados de mobilidade em Manaus, mostram um aumento gradual de pessoas saindo para se socializar, fazer compras e trabalhar após a primeira leva de casos. A atividade atingiu o pico no Natal, pouco antes de os hospitais quebrarem. O comportamento descuidado da comunidade local, que não parecia aderir ao distanciamento social, e a ação insuficiente do governador do estado, foram responsabilizados.

Ambos foram atribuídos à confiança equivocada, de que a região havia se tornado imune à Covid-19, apoiado por aquele estudo preliminar. “Teve a sensação de que a pandemia havia acabado. Você passou por maus bocados, mas agora está livre para fazer o que quiser”, diz Lotufo.

As autoridades estaduais ordenaram que as lojas fechassem por 15 dias em 26 de dezembro, quando os casos estavam aumentando, apenas para reverter a decisão no dia seguinte, após protestos de rua de empresas e trabalhadores locais.

Outras comunidades vulneráveis ​​na Amazônia, como em Iquitos, no Peru, onde estudos estimam níveis semelhantes de anticorpos (70%), podem se encontrar na mesma posição. Manaus ilustrou as incertezas e os perigos de permitir que o vírus se espalhe sem limites, como alguns propõem, para que se atinja a imunidade coletiva de forma natural. “Manaus mostra que buscar a imunidade do rebanho por meio de infecção natural não é uma garantia. E, em segundo lugar, mesmo se pudéssemos alcançá-la, centenas de milhares de pessoas morreriam como consequência”, diz Gurdasani. Quanto mais o vírus se espalha, maior é a probabilidade de sofrer mutação também.

De volta ao terreno da realidade, a situação ainda é terrível. A Venezuela, ela própria sofrendo uma crise pandêmica, doou suprimentos de oxigênio para diminuir a escassez em Manaus, e a força aérea do Brasil tem transportado suprimentos para a cidade ribeirinha, o que não foi o suficiente para preencher a lacuna.

A cidade é capaz de produzir apenas um terço do oxigênio necessário, afirmam Médicos Sem Fronteiras, que alertam sobre o efeito devastador nas cidades rio acima da capital, na região rural da Amazônia. Com a falta de infraestrutura de saúde e uma população imunologicamente incompetente, os efeitos do otimismo exagerado e de uma nova variante mais contagiosa, podem vir a ser ainda mais devastadores.

 

Referente ao artigo publicado em BMJ

 

Dylvardo Costa

 

 

Autor: 
Dr. Dylvardo Costa Lima
Pneumologista, CREMEC 3886 RQE 8927
E-mail: dylvardofilho@hotmail.com

 

 

 

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