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Está faltando presente neste Natal

Recentemente, publiquei com outros cinco autores um artigo intitulado ‘Conforto nos momentos finais da vida: a percepção da equipe multidisciplinar sobre cuidados paliativos1”, no qual o cuidado paliativo (CP) foi citado como abordagem promotora da qualidade de vida de pacientes fora da possibilidade de tratamento modificador da doença, que ocorre mediante prevenção e alívio do sofrimento, sendo a identificação precoce dessa irreversibilidade essencial à abordagem paliativista. Mesmo ciente disso e sendo profissional de saúde, há pouco passei por uma situação familiar na qual em um mês três membros familiares foram a óbito (um por câncer e dois por Covid-19) e me senti muito desconfortável com a linha divisória entre instituir ou não cuidado paliativo e me dei conta de quantos estariam na mesma situação que eu vivenciava, no caso da Covid principalmente, pela rapidez da evolução da doença.

Sobre ela, tem-se que nos últimos anos a comunidade se habituou a receber dos profissionais de saúde o diagnóstico genérico “virose” e até a já saber de pronto o que fazer nesses casos: repouso, hidratação, procurar aumentar a imunidade e tudo ficaria bem em três ou quatro dias. E não é que de súbito aconteceu um dia em que esta regra foi furada? Pois é, a famosa Covid-19 veio para quebrar todos os paradigmas, inclusive este. Mas essa não é a maior maldade dessa doença. Pior que isso são os arrastados nove meses em que idosos estão trancafiados em casa e também a ansiedade para conseguir saber a evolução de seu familiar durante a internação dos casos graves em UTI, sem contar a definição limítrofe entre ser recuperável ou se tornar um paciente de Covid-19 em “cuidados paliativos”. O limiar entre estes dois lados é tão tênue, que, muitas vezes, não chega a ser pensado nem instituído pelos profissionais, porque não dá tempo ou simplesmente pela falta de hábito.

Do lado de cá também não dá tempo pensar que seu familiar irá morrer de Covid-19 naquela internação, pois são tantas decisões a tomar – se faz ou não soro de convalescente, se faz ou não tanta coisa, pois quase nada tem evidência científica ainda. Além disso, é tanto termo de autorização para assinar, porque tudo a família tem que assinar autorizando, já que não tem evidência científica. Depois ainda resta a preocupação de pagar, de tentar ler as coisas novas e de não se contaminar nem levar contaminação para o familiar doente, afinal, ele já está tão fraco, não é mesmo?

Assim, com tanta correria e tanta coisa a decidir, falta tempo pra dizer “eu te amo”, pra curtir os últimos minutos de vida daquele ente querido juntos, pra contar de novo aquela velha história de família que, pela milionésima vez, vocês ririam dela, falta espaço para um abraço apertado e para um último olhar companheiro. No fim de tudo, falta também o velho tapinha nas costas durante o velório e aquela roda de conversa só com os familiares que somente se encontram quando morre um parente em comum. Falta o último choro e o último adeus. Assim, considerando que paliativo significa atenuante, calmante, aliviador, amenizador, suavizador e confortador, eu lhe digo que inexiste qualquer bálsamo ou conforto em perder alguém assim, seja em sete ou em quarenta dias. Há sim muita aspereza e muita dureza de uma verdade que entra porta adentro e vem depressa sem convite passar o Natal.

 

1 Silva Júnior AR, Moreira TMM, Florêncio RS, Souza LC, Flor AC, Pessoa VLMP Equipe multiprofissional e cuidados paliativos. Rev enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2019; 27:e45135. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/reuerj.2019.45135.

 

Sobre a autora:

A Profa. Dra. Thereza Mª Magalhães Moreira é enfermeira e advogada, além de professora do curso de Enfermagem da UECE. Dra. Thereza também é Pesquisadora do CNPq

 

 

 

 

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